domingo, 14 de agosto de 2011

Antropologia Cultural: Contribuições a Educação Afro-Brasileira e ao Estudo dos Quilombos


sobre Cultura por Wellington Amâncio da Silva
welliamancio@hotmail.com

Pluralidade Cultural e Educação

Temos observado com grande entusiasmo o surgimento de um novo paradigma que pode nortear a pedagogia e demais ciências humanas, principalmente nas áreas de Educação e Ecologia e Etnicidade. Essa observação não termina aí, pois nossa participação se faz necessária quando da satisfação dignificante em contribuir para o seu desenvolvimento. Nomes como Paulo Freire, Leonardo Boff, Néstor García Canclini, Fritjof Capra, Moacir Gadotti, Jacques D’adesky, entre outros, São os precursores de um manifesto globalizante onde ressoa as vozes da terra e dos seres da natureza, dos oprimidos e desfavorecidos, dos apaixonados e dos bons em um coral uníssono conclamando a igualdade de uma forma holística.

Nestes nos inspiramos e a partir de suas teorias lançamos um novo olhar sobre as comunidades quilombola, como forma de contribuir para o fim de um erro histórico e para a o reconhecimento dos seus valores e ideais. Em vista disso, citamos um belo conceito contido nos Parâmetros Curriculares Nacionais ao assinalar com propriedade que:

A temática da Pluralidade Cultural diz respeito ao conhecimento e à valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítoca às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira. (PCNs, p.19).

O boicote ideológico, político e econômico às manifestações de caráter étnico e cultural das comunidades quilombolas, por exemplo, constitui-se em uma violência quanto à pluralidade de culturas no Brasil e um crime contra o afrodescendente. Não queremos dizer que o Brasil tem muitas caras no sentido de raças – o que pode soar como separação, observação vertical, ou que o país é constituído por blocos culturais herméticos, queremos postular que a valorização desta Pluralidade Cultural constitui-se na restauração das características genuínas do país, visto que esta “quer dizer a afirmação da diversidade como traço fundamental na construção de uma identidade nacional (p. 19)”, pois nossa identidade nacional fora fragmentada através desses séculos de racismo institucionalizado.

Uma identidade é um corpo de características próprias construídas através de séculos de relações sociais, de tentativas de erros e acertos, de aperfeiçoamentos e de aceitação do outro. Falamos de unidade em diversidade, pois a comum união destas num só Brasil promoverá a cidadania para todos os cidadãos. A respeito dessa unidade cultural o PCN deixa claro que: “o que se almeja, portanto (...) não é a divisão ou o esquadrinhamento da sociedade em grupos culturais fechados” (...) (p.21). “A pluralidade de forma de vida”, pelo contrário, promove um enriquecimento em vários aspectos e em várias instâncias da vida e do convívio igualitário como forma emancipatória de uma nação em relação aos fatores internacionais de monopólio, de hegemonia e de estereótipos.

Porque a revisão de conceitos e o abandono (dado pelo reconhecimento crítico) de certas tendências racistas nas pseudociências sejam elas racionalista cartesiana, positivista ou empirista, promoverá em seguida nossa emancipação científica. Para isso é preciso ter em mente o tamanho do projeto de transformação da sociedade, visto que não é individual nem tarefa dos assim chamados intelectuais, porque “mudar mentalidades, superar o preconceito e combater atitudes discriminatórias são finalidades que envolvem lidar com valores reconhecidos e respeito mútuo, o que é tarefa para a sociedade como um todo”. (id, ibid. p. 23).

A escola pode contribuir grandemente tendo em vista a atual oportunidade de mudar sua tendência histórica e unilateral de reproduzir ideologias de classes hegemônicas. Ainda hoje, “amparada pelo consenso daquilo que se impôs como se fosse verdadeiro, o chamado, criticamente, ‘mito da democracia racial’, a escola muitas vezes silencia diante de situações que fazem seus alunos alvo de discriminação, transformando-se facilmente em espaço de consolidação de estigmas”. (id. ibid. p. 24), esse fato tem inculcado nos alunos, vítimas ou não destes traumas, concepções saturadas de erro que reforçam o distanciamento abismal entre pobres e ricos entre oportunidades e abandono social. No entanto, “combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial, empreender reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas da escola”. (Diretrizes Curriculares Nacionais p.14).

Quando do processo de pesquisa de campo observamos que no livreto “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana”, havia uma definição para a compreensão do termo “étnico”:

Na expressão étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos são também devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das origens indígenas, européias e asiáticas. (p. 13).

Esses valores e princípios típicos da origem indígena originais à localidade, não entraram em conflito como os valores e princípios de ancestralidade africana. Em vista disso, os primeiros descendentes quilombolas que ali acamparam se relacionaram com os ancestrais indígenas e os absorveram cultural e geneticamente, não perdendo, portanto, suas características essenciais quanto à cultura e quanto à etnicidade. No entanto, a cultura de matiz áfrica justificada pelo nome de “quilombo” e não pelo nome de aldeia é o que ficou para nós como referência ao passado daquela localidade, mesmo não havendo indícios de cultura quilombola, visto que essa foi absorvida pela cultura comum.

Em ultima instância, e quanto matizes culturais inerentes uma etnia específica, foi observado que os moradores do povoado perderam esses matizes de forma que já não é possível definir o que é quilombola e o que não é. Mesmo tendo sua ancestralidade africana e indígena, é visível que absorveram a cultura comum veiculada pelos meios de comunicação disponíveis, estando de tal forma, “urbanizados”, a ponto de não se identificarem e se reconhecerem na e com as manifestações quilombolas. Isso se reflete em uma série de preconceitos velados contra a cultura afro-brasileira.

Geograficamente o povoado se expandiu a partir da comunidade quilombola, e desta só restam resquícios arquitetônicos muito degradados que demonstram construções em alvenaria. Hoje, o povoado Cruz traz essas lembranças a partir dos mais velhos, não apresentando o desejo de resgatar a cultura ancestral quilombola, são somente lembranças que se apagam entre as novas gerações de moradores, visto que todo o povoado tem mais ou mesmo as características culturais da cidade de Delmiro Gouveia. Este fato reforça a tese de Muniz Sodré ao assinalar que a cultura de massa tem a tendência a apagar a cultura nativa para tomar espaço. Assim a cultura nativa que se construiu a partir da terra e do modo de produção agrário e de caça e pesca, já não encontra o seu lugar naquela localidade (salvo a apicultura muito forte ali). Além da pesca, o que faz a manutenção do povoado são os benefícios de aposentadorias, o salário de quem trabalha no município, a Bolsa Escola, a Bolsa Família e benefícios do tipo. É certo que juntamente com esses benefícios, que causam boa impressão, a acessibilidade e facilidade aos meios de comunicação eletrônicos tenham ajudado a esquecer algumas características essências de etnicidade quilombola a ponto de não identificarmos, à priori, em seus traços mais gerais.

Discussão Conceitual

Antes de apresentar a comunidade a qual daremos inicio ao estudo de suas características culturais e sociais, queremos circunscrever algumas definições a partir de certas determinações da antropologia cultural quando se diz, entre outros conceitos pertinentes, que “cultura consiste nas formas de pensar, sentir e agir, socialmente adquiridas, dos membros de uma determinada sociedade”, e ainda que “as culturas mantêm suas continuidade mediante processos endoculturais”. (Harris, 1990, p.12). Por endoculturação se entende o processo de amadurecimento e aprendizagem dos indivíduos através das várias fases da sua vida dentro de sua comunidade, adquirindo paulatinamente os aspectos culturais característicos e, ao reproduzi-los, contribui para a preservação desta. Quanto à forma de relacionar diferentes culturas, Cassirer adverte que “não podemos “medir” a profundidade de uma rama especial da cultura se não for precedida de uma análise descritiva. “A visão estrutural da cultura deve anteceder a visão meramente histórica”, Pelo fato de que:

Todas as obras humanas surgem em particulares condições históricas e sociais e não compreenderiam jamais estas condições especiais se não fossemos capazes de captar os princípios estruturais gerais que se acham na base destas obras. (Cassirer, 1997, p. 109)

Gilberto Freyre ((1973) comentava acerca dos “traços que não são expressão pura ou absoluta de uma raça ou sexo, mas principalmente de estratificação cultural, de harmonização do homem com o meio, de ajustamento ecológico, de deformação social do indivíduo pelo grupo e pelo meio”.

O característico do ser humano, aquilo que realmente o distingue, não é sua natureza metafísica ou a física, mas seu agir. Este agir, o sistema de atividades humanas, define e determina a esfera do ‘ser humano’. Linguagem, mito, religião, arte, ciência, história são os elementos constitutivos, os diversos setores desta esfera. (Cassirer, citado em Arlt, p. 81).

Laraia expõe alguns pontos de vista acerca do entendimento antropológico da cultura explicando o conceito evolucionista de cultura humana assinalada por Boas que “desenvolveu o particularismo histórico, segundo o qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou. (p.37). E expõe seu próprio conceito (baseado numa tendência materialista histórico e dialético) ao afirma que “o homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado”, pois como assinala, “ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridos pelas numerosas gerações que o antecederam”. (p. 45).

Partindo dessas premissas, é importante observar que as representações culturais se dão essencialmente a partir do sujeito e de sua ação no mundo, ao passo que investigar as manifestações culturais em si esvazia seus significados. Tomando como referência a afirmativa de Cassirer quanto ao fato de não comparar antagonicamente ramas de culturais diversas por causa de suas específicas funções sociais, é importante observar que o sujeito social, dentro de uma cultura ainda não industrial, encontra subsídios, isto é, liberdades para tornar-se sujeito histórico na medida em que se apropria com facilidade desta cultura para dar sentido a sua ação, visto que a razão de ser desta é justamente tornar-se meio para o qual se dá à empatia entre os membros da comunidade em fincão das suas necessidades e aspirações, essa cultura não é alienada, externa, outra, mas essencialmente se confunde com os próprios sujeitos porque deles é subjacente. Porém há grande dificuldade de uma cultura e sua etnicidade perdurar diante da ação invasiva da Indústria Cultural e sua coação capitalista, justamente porque com a cultura de massa vem à escola para reforças dicotomias e comparar, de forma desonesta, a cultural de uma comunidade como inferior à cultura (institucionalizante) que estará a serviço da classe hegemônica – cultura de massa tende a homogeneizar culturas diferentes e etnias sufocando as possibilidades e emancipação e construção de identidades. Dessa forma, nos perguntamos até que ponto fora preservado o Ethos cultural da Comunidade Quilombola do Povoado Cruz, desde a partida de seus ancestrais (primeiro da comitiva de Dom Pedro II e logo após, do Quilombo dos Palmares) e, o quanto é possível observar com segurança essas matizes em relação à cultura comum do Município de Delmiro Gouveia, visto que é natural ocorrer intercâmbio, ou mesmo, uma ceder espaço a outra:

É característico da cultura ser dinâmica, o que se relaciona com a extraordinária mobilidade humana. A cultura de um grupo parece sempre animada de uma espécie de impulso de expansão ou de disseminação e de uma grande capacidade de contagiar a cultura de outro grupo. (Freyre, 1973, p. 12).

Segundo Christiano Barros (2008), “hoje o conceito atual de quilombola é mais amplo para reparar uma injustiça histórica. Quilombolas são grupos étnicos constituídos principalmente por uma população negra, que se auto definem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e as práticas culturais próprias", Partindo dessas premissas é possível resgatar ou recompor a tradição anterior através da história oral, das músicas, das danças, dos contos, e até mesmo, da culinária, das vestes e das expressões verbais, sendo que aqui priorizamos a história oral como forma de resgatar as vivências e interpretações dos fatos passados, mesmo quando cotejamos com a cultura alheia posterior:

(...) a história oral de vida é o relato de um narrador sobre sua existência através do tempo. Os acontecimentos vivenciados são relatados, experiências e valores transmitidos, a par dos fatos da vida pessoal. Através da narrativa de uma história de vida, se delineiam as relações com os membros de seu grupo, de sua profissão, de sua camada social, da sociedade global, que cabe ao pesquisador desvendar. (Lang 1996, p. 34, citado em Cassib)

Estudar a comunidade, mesmo tendo em vista a necessidade de fugir dos “vícios” métodos-teóricos da ciência racionalista, isto é, ao investigar tal comunidade, seu povo e sua cultura como objetos, temos outro agravante: ainda nos recaem certos cuidados psicológicos condicionantes quando “ao estudar as diferenças culturais é importante ‘manter-se em guarda’ diante dos hábitos mentais chamados etnocentrismo. (Harris, 1990, p. 12), pois, quanto a sua forma ideológica “devemos estar alerta contra a política etnocêntrica que às vezes toma o nome da Ciência em vão” (Freyre, 1973, p. 09). Em vista disso é possível antever a dificuldade do ofício de pesquisar culturas tradicionais, principalmente quando da necessidade de olhar sob prisma da Antropologia, Ainda gostaríamos de reforçar os cuidados quanto ao entendimento de cultura popular sem generalizá-la ou compará-la como inferior à cultura elitista, já que essa última bebe geralmente na fonte popular. O senso comum afirma que esta última é mais elaborada, mas sofisticada (expressão vazia) e mais racional, entretanto, sob quais aspectos a cultura popular é inferior a qualquer outra cultura? Ora, a cultura popular não é estática, visto que:

O "popular" não está contido em conjuntos de elementos que bastaria identificar, repertoriar e descrever. Ele qualifica, antes de mais nada, um tipo de relação, um modo de utilizar objetos ou normas que circulam na sociedade, mas que são recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras. Tal constatação desloca necessariamente o trabalho do historiador, já que o obriga a caracterizar, não conjuntos culturais dados como "populares" em si, mas as modalidades diferenciadas pelas quais eles são apropriados. (Chartier, 1995, p. 06).

A essas modalidades de apropriação dos elementos que compõem sua cultura (do campo) são diferenciadas do modelo de cultura da cidade que tem sua função maior como reprodutivista dos modelos da classe dominante para a manutenção do status quo; Isso deve ser levado em conta pelo pesquisador.

A respeito da cultura como “um dos termos mais difíceis de definir de maneira completa e unívoca” (...), porque se “avulta e passeia sinuoso e esquivo, por todos os campos do saber” (Vannucchi, p.22) ainda mais requer cuidado quando a cultura se acrescenta o termo “popular”, visto que pode ser viciado por concepções ideológicas que corrompem a exposição de realidades: Visto que em nossa sociedade e sob a ótica do olhar hipertrofiado da cultura hegemônica temos alguns exemplos:

O popular é nessa história o excluído: aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido e conservado; os artesãos que não chegam a ser artistas, a individualizar-se, nem a participar do mercado de bens simbólicos “legítimos”; os espectadores dos meios massivos que ficam de fora das universidades e dos museus,”incapazes” de ler e olhar a alta cultura porque desconhecem a história dos saberes e estilos. (Canclini, 2008, p. 205)

Porém, é certo afirmar que dada cultura popular, especificamente ao ambiente quilombola, primeiramente tem sua utilidade e significados imanentes ao seu estilo de vida, pois evoluíram como representações simbólicas deste e neste ambiente, e ainda estão profundamente ligadas ao modo de produção do campo e do quilombo, inter-relacionadas aos seus ritos e linguagens, às suas tradições e mitos, e geralmente dinamizadas como artifícios inteligentes para a manutenção social, todos estes aspectos da cultura popular estão coletivizados para subsistência. Mas a apropriação da cultura pelos sujeitos dessas tradições por endoculturação pode ser transformada quando sujeita a hibridação com elementos de outras culturas como a cultura tipicamente indígena presente no Nordeste ou mesmo posteriormente da cultura de massa, segundo a exposição dos indivíduos aos meios de comunicação, como TV, Rádio, celular, que adentram suas comunidades.

A História Oral como Registro dos Fatos

A respeito de um dos mais importantes modos de reproduzir a cultura de uma forma muito dinâmica, temos a História Oral, - com iniciais em letras maiúsculas no intuito de fazer justiça, em importância e função, a Historia como disciplina. As representações da História Oral, grosso modo, se confundem com fato e mito, com objetividade e subjetividade, com coletividade e individualidade e com passado e presente, de maneira que o sujeito é gestor da sua história e colaborador (no sentido de co-labor) da história social do grupo ao qual convive, tornando o existir, o ser e o agir uma relação multidimensional da história e do mito e entre os seus. A respeito do mito e o preconceito que se tem contra ele como menos importante que a história, Cassirer (1946) citando Max Miller, assinala que “o mito é inevitável, é natural e é uma necessidade inerente da linguagem, se nós reconhecermos na linguagem uma forma exterior de pensamento”. (p. 05), Maria Lucia de Arruda Aranha (2000) exemplifica através das tradições e rituais (casamento, aniversários, festas de formaturas) presentes em nossa sociedade, que “o mito ainda faz parta de da nossa sociedade, como uma das formas indispensável do existir humano” (p. 55), então damos importância ao mito como representação das características particulares de uma sociedade levando em conta não o seu grau de “civilização”, mas e sua maneira de expressar-se e dar significado as relações de igualdade entre seus membros, visto que é um dos aspectos da cultura.

A história oral é socializada através dos mecanismos das reminiscências, das emotividades, da memória involuntária e da Memória, dos gestos, dos cantos e poemas verbais, sendo todos estes eficientíssimos mecanismos pedagógicos de aprendizagem e reflexão, intensos em sua formação ética e funcional para a vida comunitária, assim, sua história não é alienada porque não gesta fora do indivíduo e segundo intentos alheios.

Ainda, a História Oral propicia aos membros da comunidade, a elaboração e o desenvolvimento de significados e caminhos através de senhas específicas que ativam reminiscências no interlocutor e na comunidade a partir, por exemplo, de uma cantiga, ou de uma descrição de um fato do passado, sendo que estas reminiscências são trazidas à existência (cultura) geralmente pela fala dos mais idosos, (que são respeitados não por se tornarem “oráculos” da tradição oral). Então, no campo de estudo dos aspectos étnicos das comunidades quilombolas, a história não pode ser fragmentada para a análise simplista, visto que por estar interligada aos vários aspectos daquela comunidade torna-se o esteio pelo qual essa se caracteriza: “É evidente que compilar fontes orais é uma atividade que aponta para a conexão existente entre todos os aspectos da história e não para as divisões entre elas”. (Thompson, 1992, p.92)

Quanto à estrutura da história escrita em sua acepção cartesiana, entendemos que esta é mais cumulativa – porque tende a registrar em arquivos “estáticos” as memórias de uma sociedade, por outro lado, a história oral se refaz e se recria sem perder a essência dos acontecimentos passados. Assim, assinalamos um pensamento de Ecléa Bosi, ao sugerir que “o que foi não é uma coisa revista por nosso olhar, nem é uma ideia inspecionada por nosso espírito – é alargamento das fronteiras do presente” (p. 18). Dessa forma, entendendo o ontem e o hoje como uma relação constante que nos trás a ideia de existir, de ser e de agir, quebrando a “lógica” dicotômica do arcaico e do moderno como coisas à parte, para serem contempladas.

Outro aspecto interessante da oralidade é que as comunidades mais isoladas da “civilização” não vêem ainda a necessidade de registrar sua história de forma convencional mesmo quando a escola e outras instituições pregam o contrário – o que é uma tensão ideológica de forças. Dentro dessa lógica, há quem afirme que existam histórias para serem escritas e histórias para serem contadas, se for assim, as histórias escritas representariam a versão de realidade dos vencedores em detrimento da verdade dos vencidos; e as histórias orais representariam a versão de realidade de uma comunidade para si – sendo que esta comunidade por estar ligada a campo e não a cidade, não se interessa em discutir verdades distintas, visto que a verdade, primeiro brota da terra através dos preciosos mantimentos e em seguida se manifesta através do trabalho e da cooperação, por fim, é representada culturalmente nas celebrações de gratidão à bonança da natureza, entretanto pelos aspectos culturais do ser humano, ele “está além da natureza e, no entanto, permanece parte dela” (Arlt, 2008, p. 191), este “além da natureza” refere-se ao fato da capacidade do sujeito observar externamente ao mesmo tempo em que é “parte dela” sendo impossível desassociação, portanto, não pode existir dicotomia entre cultura e natureza.

Um aspecto da oralidade é que ela promove uma capacidade diferenciada de memória. Os mecanismos de memorização específicos da fala demonstram uma habilidade mental incomum de fazer vir à tona fatos passados de maneira muito vívida, por exemplo, ao aconselhar os mais jovens ou ao resgatar a história dos antepassados. Esse tipo memória é incorporado à outra: com a escola, é posta à comunidade quilombola a necessidade de ler e escrever como forma de aquisição de conhecimentos qualitativos e quantitativos, enquanto pela educação informal (ou genuinamente do campo) propicia conhecimentos apenas qualitativos.

Referências

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VANNUCCHI, Aldo. Cultura Brasileira: O que é, e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.

Um comentário:

  1. Olá, sou o autor deste trabalho. Estou ampliando o artigo publicado em parte por você - fico muito agradecido. No entanto, as revistas científicas se negam a publicá-lo justificando que parte dele (acima) já se encontra publicado, quebrando assim o ineditismo do texto, por causa disso, peço-lhe que delete-o, por favor. Agradeço pela compreensão e pelo prestigio ao meu texto. Se você ainda desejar, podemos publicar, em revista cientifica com ISSN, um texto juntos.

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